12/07/2009

Estrutura da narrativa
O percurso gerativo do sentido
Jorge Viana de Moraes*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Além dos já conhecidos elementos estruturais da narrativa, tais como o narrador, as personagens (principal, auxiliar, antagonista), o espaço, o tempo, o enredo, etc., os textos narrativos também se estruturam em quatro fases distintas ao longo de seu desenvolvimento, isto é, do seu percurso: a manipulação, a competência, a performance e a sanção.

Para entender cada uma dessas fases, tomemos como exemplo a famosa fábula "O lobo e cordeiro", de La Fontaine:

O LOBO E O CORDEIRO

Na água limpa de um regato,
matava a sede um cordeiro,
quando, saindo do mato,
veio um lobo carniceiro.

Tinha a barriga vazia,
não comera o dia inteiro.
- Como tu ousas sujar
a água que estou bebendo?
- rosnou o Lobo a antegozar
o almoço. - Fica sabendo
que caro vais me pagar!

- Senhor - falou o Cordeiro -
encareço à Vossa Alteza
que me desculpeis mas acho
que vos enganais: bebendo,
quase dez braças abaixo
de vós, nesta correnteza,
não posso sujar-vos a água.

- Não importa. Guardo mágoa
de ti, que ano passado,
me destrataste, fingido!
- Mas eu nem tinha nascido.
- Pois então foi teu irmão.

- Não tenho irmão, Excelência.
- Chega de argumentação.
Estou perdendo a paciência!
- Não vos zangueis, desculpai!
- Não foi teu irmão? Foi o teu pai
ou senão foi teu avô.
Disse o Lobo carniceiro.
E ao Cordeiro devorou.

Onde a lei não existe, ao que parece,
a razão do mais forte prevalece.


La Fontaine. "O lobo e o cordeiro".
In: Fábulas. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 12.


Existem vários elementos concretos que compõem esta narrativa (cordeiro, lobo, regato, água, etc). No entanto, por baixo desses elementos poderíamos imaginar uma representação de nível mais abstrato: o texto relata uma transformação, ou seja, a passagem de um estado inicial para um estado final. Vejamos como isso ocorre.


Manipulação
Nas duas primeiras linhas do texto está explícito que o que levou a personagem cordeiro a beber água no regato foi a sede: esta é a manipulação. A manipulação consiste em uma personagem induzir outra a fazer alguma coisa. O manipulador pode usar de vários expedientes para induzir uma personagem a agir: um pedido, uma ordem, uma provocação, uma sedução, um tentação, uma intimidação, etc.

Mas pode-se dizer, numa instância mais abstrata, que a manipulação nessa fábula é a manutenção, por parte do cordeiro, de sua própria vida. Como se vê, o manipulador não precisa necessariamente ser uma personagem isolada (o príncipe, por exemplo), ou uma personagem coletiva (o povo, a pátria, um grupo de pessoas, etc), ou um ser animado (o cachorro fez o gato correr); inanimado (a ponte caiu, o que nos levou a procurar outro caminho) ou uma personagem que imponha a si mesma uma obrigação.

Todavia, para que a manipulação seja eficiente, é necessário que a personagem manipulada queira ou deva fazer (podendo querer e fazer ao mesmo tempo). No caso do cordeiro, ele queria matar a sede e manter-se vivo.


Competência
A próxima fase seria a competência. Para agir, não basta que a personagem queira ou deva, mas também que saiba e possa. Ilustrando com o exemplo da fábula, podemos dizer que o cordeiro, naturalmente, é presa do lobo na cadeia alimentar. Sendo assim, para desempenhar a função de saciar a própria sede (e de manter-se vivo), o cordeiro deveria livrar-se do lobo, quando este surgiu do mato. Como vimos, o cordeiro tenta argumentar contra o lobo na tentativa de escapar com vida. Esta parte da fábula pode ser considerada como a competência.


Performance
No entanto, a performance, isto é, o fazer persuasivo do cordeiro para com o lobo, não surte efeito, pois o lobo queria mesmo era devorá-lo, não importando o argumento que o cordeiro usasse. Tendo em vista que, nessa fase do percurso narrativo, geralmente, há sempre uma relação de perda e ganho, o lobo ganhou, o cordeiro perdeu.


Sanção
Na última linha da fábula narra-se que o cordeiro é devorado pelo lobo. Há aqui a sanção negativa do cordeiro, que se dá com a sua morte.

Em resumo, a personagem cordeiro é manipulada pela vontade de beber água. Esse sujeito (cordeiro) do fazer (beber água/ manter-se vivo) ao se deparar com o lobo (personagem antagonista), precisa adquirir uma competência (tentar persuadir o lobo a não matá-lo). O cordeiro, então, tenta desempenhar essa competência apelando para o bom senso (personagem auxiliar). Cria-se um conflito (o instinto predador do lobo), que não importando qual fosse o argumento usado pelo cordeiro (performance), devora-o.

Chega-se, assim, a uma sanção que é negativa para o cordeiro: sua morte; e positiva para o lobo: sua refeição.

Esquematicamente, teríamos:
*Jorge Viana de Moraes é mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É professor universitário em cursos de graduação e pós-graduação.

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